quarta-feira, 14 de maio de 2008


A mãe do juiz
Por ROBERTO VIEIRA


"Até hoje eu não sei, meu filho. Ele poderia ter sido qualquer coisa, qualquer coisa mesmo. Sempre foi um menino inteligente, aplicado nos estudos, sempre tirava notas boas na escola.
Mas tinha alguma coisa de diferente nele.
Os irmãos organizavam uma pelada e ele ficava de apito na mão, apitando falta, marcando pênalti. O caçula gostava de ser artilheiro, dizia que era o Roberto Dinamite. Mas, doido igual ao Zezinho, só o mais velho que brincava de ser goleiro.
As outras mães davam força. Diziam que ele levava jeito pra coisa. Tinha pelada? Lá ia ele de preto. Brabo feito siri. Se alguém dizia que ele tinha errado na marcação ele logo dava cartão, enfrentava, gritava.
Perdi a amizade da minha vizinha no dia em que ele expulsou os dois filhos dela na final do campeonato da escola. Ela nunca se conformou. Dizia que ele era muito rígido. Inflexível.
O pai ria da história. Dizia que aquilo ia sobrar pra mim. Mesmo assim levou uma conversa séria com ele e disse que ninguém vive de apito honestamente. Ele devia procurar uma profissão, ser engenheiro, advogado. Ser juiz era pras horas vagas.
Ele concordou, entrou pra faculdade de direito e pro curso de árbitro da Federação. Passou nos dois com distinção.
Eu fiquei toda orgulhosa na entrega dos diplomas. Meu filho sorria feliz. Começou a apitar jogos importantes. Jogo que aparecia na televisão. Começou a ser elogiado pelos jornalistas, reconhecido nas ruas. Era o juiz revelação do futebol brasileiro segundo o Globo Esporte.
Eu, como mãe, colecionava suas fotografias num álbum de retratos. Mas nunca fui a campo.
Um dia ele chegou triste, cabisbaixo. Marcou um pênalti que o tira teima mostrou que foi fora da área. Nesse dia ele mal dormiu. Eu vi a luz do quarto acesa até tarde. Ele estava na frente da televisão assistindo mil vezes o mesmo lance. Controle remoto nas mãos.
De manhã nem quis tomar café. No trabalho ouviu piadinhas infames durante todo o expediente. Mas os dias se passaram, outro jogo chegou e ele foi se acostumando com a vida.
Um dia disseram que ele roubou. Logo meu filho, sempre tão honesto, incapaz de contar uma mentira. Aquilo doeu fundo na alma dele. Mas um colega mais antigo veio conversar com ele e disse que nessa profissão todo mundo acha que só tem ladrão.
Mal sabem eles o sofrimento de uma mãe quando ouve o filho ser xingado por uma multidão.
Escrevo estas linhas por um motivo apenas. Um motivo tão singelo quanto impossível.
Não é por mim. É por tantas mães no Brasil e no mundo que hoje irão sofrer vendo os seus filhos correndo em campo. Proibidos de fazer um gol e levantar a camiseta com os dizeres: 'Valeu mamãe!'
Eu gostaria que pelo menos uma vez lembrassem que a mãe do juiz é uma mãe igual a todas as outras. Igual a mãe dos torcedores.
E que pelo menos nesse dia lembrassem delas com carinho.
Obrigado pela atenção".
Mercedes Alencar, mãe de juiz.